No Sermão das Chagas de São Francisco, Pe. Antônio Vieira fala sobre a possibilidade de querer e não querer simultaneamente. Sobre o homem preguiçoso e irresoluto que quer e não quer. Como o escritor que quer, porque quer o fim; e não quer, porque não quer aplicar os meios. Nosso olhar se volta aos céus, mas nossas ações nos conduzem ao inferno. E não me tomem aqui por coach ou jesuíta. Trata-se de escrever. E o que aprendi, seja por conta própria ou, e principalmente, por alheias e qualificadas opiniões: é que o ideal não é desejar o Jabuti, um contrato de publicação, milhares de assinantes no Substack ou outro objetivo qualquer que se almeje; mas aprender a apreciar a aplicação dos meios, isto é, a gostar do caminho.
O historiador Marc Bloch, numa trágica circunstância de sua vida, escreveu que o bom trabalhador ama o trabalho e a semeadura assim como às colheitas. A semeadura é o caminho para a colheita, e o caminho do escritor é trilhado duma só maneira: vencendo a distância que separa a sua bunda da cadeira — ou outro canto qualquer onde você escreva, ou caso o faça em pé como Hemingway, ou seja um PcD, queira relevar a imagem — Da mais anônima nádega dum escritor de fanfics ao célebre traseiro dum Nobel; das amassadas e mal-pagas dum jornalista até a bunda imberbe dum feitor de newsletters; todos, uma hora ou outra, venceram essa distância.
Tudo conspira contra escrever. Vencer a distância que separa você da máquina de escrever é o mais difícil. Como dizia Sinclair Lewis: “escrever é a arte de sentar a bunda numa cadeira."
Fala Fernando Sabino em sua entrevista ao Roda Viva. Já uma célebre amiga e corresponde do escritor mineiro, cujas cartas são por si só literatura, afirmava:
Era preciso tentar escrever sempre, Não esperar por um momento melhor porque este simplesmente não vinha. Escrever sempre me foi difícil, embora tivesse partido do que se chama vocação. Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir
Clarice Lispector.
Depois que começa é fácil, aliás como tudo na vida, não é? Disse Sabino. O problema é justamente o diabo do começo. No segundo capítulo de seu livro Apontamentos Sobre Escrita Criativa, José Couto Nogueira conta uma anedota da colunista estadunidense Fran Leibowitz:
Como se pode saber que um bebê vai ser escritor? Quando o médico encosta o estetoscópio na barriga da mãe para saber quando a criança vai nascer e só ouve desculpas.
Há quem defenda que somos aquilo que fazemos, embora existam escritores que se definem precisamente por aquilo que evitam ou que deveriam estar fazendo: escrever. Ainda que a vida inteira de um autor não transcorra debruçado sobre um computador ou um caderno, rascunhando ou digitando como um hacker de filmes hollywoodianos, e nem deveria; alguma porção do seu dia deve estar reservada a empreender esta tentativa.
E, por mais corriqueiro e antiartístico que pareça, há rotinas. Para se escrever um livro é necessário criar uma rotina que nos sirva. Sem ela, o trabalho arrasta-se por anos, décadas, indefinidamente… A procrastinação é a grande besta do escritor mais empenhado.
José Couto Nogueira.
A medida da escrita certamente é a constância, e a maior virtude do escritor talvez seja a persistência. Há frases célebres e lugares-comuns sobre transpiração e trabalho duro. Certas afirmações soam obvias, duma sabedoria gasta e pouco aderente. Mas como diria um saudoso professor do departamento de História da UFC, Jailson Pereira da Silva: obvio não é o que todos sabem, mas o que não pode deixar de ser repetido.

“Eu não acredito, aliás, me irrita um pouco o termo inspiração… acredito em trabalho… eu sento e eu me disciplino.”
João Ubaldo.
A excelência é uma arte obtida com o treinamento e o hábito: não agimos corretamente porque temos virtude ou excelência, mas a temos porque agimos corretamente; "essas virtudes se formam no homem enquanto ele vai agindo"(Ética, II, 4); nós somos aquilo que fazemos repetidas vezes. A excelência, então, não é um ato, mas um hábito: "o bem do homem é a alma trabalhar no caminho da excelência uma vida inteira; (...) porque assim como uma andorinha só ou um único dia bonito não faz verão, não é um único dia ou um curto espaço de tempo que torna um homem abençoado e feliz" (Ibid., 1, 7).
Will Durant sobre Aristóteles
Como não é um único dia ou um curto espaço de tempo produtivo que nos tornam escritores.
E uma vez vencida a distância, quando voltar a estabelecê-la? Quantos caracteres, palavras ou páginas consistem numa produção diária satisfatória? João Ubaldo numa conferência na Academia Brasileira de Letras chamada “Como eu Escrevo”, revelou que desenvolveu junto a um grupo de amigos do ramo algumas medidas usadas em suas rotinas: 1 GG, 1 Conrad e 1 Wolf. Sendo cada unidade o número de palavras que os autores referidos escreviam por dia:
1 GG (Graham Greene) = 500 palavras por dia
1 (Joseph) Conrad = 800 p/d
1 (Virgínia) Wolf = 1000 à 1200 p/d.
Na altura, em 2014, Ubaldo afirmou não encarar 1 Wolf, só sendo mesmo Virginia. O autor trabalhava na base de 1 GG. “Quer saia alguma coisa que preste, quer não. Porque no dia seguinte eu posso jogar tudo fora, mas tem que está aquilo escrito.” Ouvir isso foi um alívio, pois trabalho com uma medida ainda menor e por ser nomeada e, certamente, não serei eu a emprestar minhas anônimas iniciais a batizá-la: 300 palavras por dia. Eis minha meta. — Caso conheçam escritores célebres que também a utilizem, queiram por gentileza me informar. — E assim com Ubaldo, tento escrevê-las todo santo dia quer prestem ou não.
À título de praticidade: 300 palavras são os três primeiros parágrafos desse texto, contando com a citação de Sabino até a palavra ‘preciso’ no início da citação de Clarice.
Como se vê, pouca coisa. O texto inteiro tem exatas 2561 palavras, com um tempo de leitura estimado pela plataforma de 12 minutos. Levaria em torno de 8,536666… dias para escrevê-lo, caso respeitasse religiosamente minha rotina. O que, obviamente, não foi o caso. Além do que, a maioria das palavras aqui escritas, as que importam, são de lavra alheia. O certo é que com constância e ao cabo de um mês, as três centenas diárias totalizarão 9300 palavras. Claro, um milhar delas não será aproveitado, outras acabarão alteradas e muitas jamais virão a lume; mas as chances de escrever algo que se aproveite crescem conforme a produção continue.
Minha rotina consiste em dias produtivos, alguns com excedente de palavras, mas em geral na média; dias menos rendosos, ocasionalmente com algum déficit; e outros absolutamente infrutíferos, mas jamáis inúteis. Meu objetivo não é quebrar metas numa neurose corporativa, mas fazer com que os dias improdutivos sejam exceções. É importante não se deixar levar pelo potencial perigoso de se apegar a normas e rotinas inflexíveis.
A escritora Carol Bensimon, num encontro de escritores da Seiva, declarou não trabalhar com metas diárias, e que, por vezes, um insight no banheiro vale muito mais para destravar sua escrita. Tenha em mente que não só o resultado do que escrevemos, mas o próprio ato de escrever é uma questão profundamente pessoal. Então trate de encontrar algo que funcione para você, mas seja honesto e saiba distinguir a procrastinação do ócio produtivo ou mesmo duma pesquisa paralisante. O Overresearch — para os publicitários e demais afeitos a anglicismos — pode ser um mecanismo de procrastinação perigoso, por ser um autoengano. Afinal, estamos trabalhando, investindo nosso tempo em melhorar nosso texto. Porém, escrever não é uma competição esportiva. Devemos escrever antes de estarmos prontos. Integrar a pesquisa ao texto fica cada vez mais difícil conforme nos aprofundamos. Comece quanto antes. A pesquisa deve impulsioná-lo e não o fazer postergar a escrita. Não há como melhorar um texto inexistente.
Dizer, por exemplo, que: Eu, Raí Angelo, tenho três romances, uma trilogia cearense, tudo na minha cabeça (embora tenha escrito apenas um que será lançado no meio do ano pela editora Mondru) equivale a dizer que não tenho romance nenhum…
por enquanto.
A Merda e o Lixo
Há um conceito de Anne Lamott que pode lhe ser útil ao iniciar cada novo dia de escrita, o de Shitty First Drafts. Lamott argumenta que precisamos deixar a escrita correr solta, pois é precisamente escrevendo esses primeiros rascunhos de merda que alcançaremos à clareza e, às vezes, o brilhantismo em uma segunda ou terceira versão — ou uma quarta, quinta ou sexta… com sorte, quem sabe? —. A contista e romancista Norte-americana Jennifer Egan afirma que só é possível escrever com regularidade se estivermos dispostos a escrever mal. Devemos aceitar a má escrita como um exercício que nos permitirá escrever bem. É famosa a frase de Ernest Hemingway sobre escrever uma página de “obra-prima” a cada 91 páginas de merda. E o que Hemingway fazia era tentar descartar toda a merda no cesto de lixo. Saber detectar a merda, para Hemingway, consiste numa das grandes qualidades de um escritor.
Sobre Graham Green, o escritor das 500 palavras, há uma interessante matéria sobre bloqueio criativo no The New Yorker. Embora acometa com mais frequência os ficcionistas, ninguém esta a salvo de se sentir bloqueado. Na matéria, Scott Barry Kaufman, um psicólogo da Universidade da Pensilvânia, reitera o que vem sendo aqui apresentado: “Quando se sente o bloqueio criativo, é bom simplesmente continuar colocando as coisas no papel — ideias, conhecimento, etc.” Lamott afirma que pouquíssimos escritores sabem realmente o que estão fazendo até finalmente o terem feito. Caso uma das sua razões bloqueadoras seja não saber o que está fazendo, o conselho não poderia ser mais adequado: descubra-o, fazendo.
Os Meios e os Materiais
No prefácio de uma nova edição de Como Escrever Bem, William Zinsser, afirmou que com o surgimento de programas como o Microsoft Word, LibreOffice e Pages ocorreram duas coisas: os bons escritores ficaram melhores, e escritores ruins pioraram. Seu livro; escrito antes da internet, dos e-mails e de processadores de texto; permaneceu útil e atual por ser, como definiu o autor, um livro sobre um ofício. E sobre o ChatGPT, DeepSeek ou qualquer outra inteligência generativa que entulha as redes aos montes com textos genéricos mais ou menos bem estruturados e informações imprecisas ou equivocadas aparentemente bem articuladas. Zinsser antecipou-se:
“Não sei quais novas maravilhas virão nos próximos trinta anos para tornar duas vezes mais fácil o ator de escrever, mas sei que elas não tornarão a escrita duas vezes melhor. Isso exigirá o velho e duro hábito de pensar e o manejo das velhas ferramentas da língua.”
Considere que o autor trata da escrita não-ficcional. No campo da literatura me parece ainda menos equivalente à relação entre a facilidade proporcionada por novas ferramentas e a qualidade artística dos textos. Volto aqui a Sabino, que conta ter aprendido com Truman Capote que Deus dá a vocação e o chicote: “Fui capaz de aprender com esforço próprio a grande diferença entre escrever mal e escrever bem, mas de repente descobri que havia uma grande diferença entre escrever bem e a obra de arte: Aí é que entra o chicote.”

“Chicote”? Você pode se perguntar: e o prazer? A alegria? A pedagogia…?
“A pedagogia que se foda!.. Você precisa é sentar a bunda na cadeira e melhorar a tua capacidade de pensamento” (As opiniões emitidas pelo professor não refletem integralmente a opinião da newsletter Duas Canetas e de seu autor)
Ainda em relação aos meios materiais para a escrita, João Ubaldo afirma que sua experiência com o computador, ao contrário do que se pensa, não acelerou o processo de elaboração de um livro. Para o autor, o computador tornou a criação ainda mais lenta. “É um nunca acabar.” A revisão pode alongar-se indefinidamente. A versão final de seu livro O Povo Brasileiro pesava entorno de 6,400 kg de papel, tornando quase inviável modificar cenas, tamanha a preguiça que o acometia. Hoje não, no computador as tentações são muitas e as combinações, múltiplas. “Eu acho até que o computador altera sutilmente o estilo do que eu escrevia antes na máquina de escrever,” declarou. Há uma maleabilidade permanente no que se escreve instituída com os processadores de texto, e o escritor pode acaba por passar a vida a alterá-lo, como diz José Couto Nogueira, que dá dois conselhos valiosos:
Nunca guardar as versões anteriores. Só há uma versão, que é a última. Guardar várias gera uma enorme confusão e a certa altura já não se sabe qual é a melhor.
Decida quando é que o texto está “fixado”, isto é, quando não precisa de mais alterações. A facilidade da edição do processador de texto leva a que se mexa nele sempre que se relê; nunca mais está pronto. É imperiosos que resista a esta tentação e, no balanço, entra a arrogância (consigo fazer melhor) e a modéstia (é o melhor que consigo…), decida finalmente que o texto terá de ficar assim.
Quanto a frase de Bloch sobre o bom trabalhador amar igualmente o trabalho e a colheita. Há outra complementar que compadre Quelemém conta a Riobaldo: A colheita é comum, mas o capinar é sozinho. Toda escrita é coletiva, mas escrever é um trabalho solitário e que não pode ser terceirizado ou substituído por ferramenta nenhuma. O martelo não faz o ferreiro, nem a colher faz o pedreiro. Não outorgue sua capacidade de pensar e de articular seus pensamentos a uma máquina, por mais cômodo que seja. Pensar, como escrever, também é um exercício. Então não tome a ferramenta por feitor. É a nossa bunda que devemos sentar na cadeira com certa periodicidade se quisermos produzir algo que preste.
Um cu timido raramente solta um peido alegre. Sentença luterana.
Sem levantar objeções (o cu) pousa-se nesta cadeira ou naquela cadeira. A diferença entre um trono e uma cadeira de cozinha, um banco e a cadeira de São Pedro não impressiona especialmente um cu não corrompido. De tempos a tempos, aceita também o chão: a única coisa de que não gosta e ficar de pé quando está cansado. Este pendor para o elemental e o fundamental predispões o cu singularmente para a filosofia*.
Peter Sloterdijk.
* E por que não o dizer também para a literatura? Então, sente a bunda na cadeira — ou o cu, como preferir — e escreva…
da esquerda para a direita.
REFERÊNCIAS:
DURANT, W. A. (2000) A História da Filosofia. Nova Cultura Ltda. São Paulo.
LAMOTT, Anne. "Shitty First Drafts.” Language Awareness: Readings for College Writers. Ed. by Paul Eschholz, Alfred Rosa, and Virginia Clark. 9th ed. Boston: Bedford/St. Martin’s, 2005: 93-96
NOGUEIRA, J.C.(2022). Apontamentos de Escrita Criativa. 1ª edição, Frases de Papel. Lisboa.
SLOTERDIJK, P. (2011) Crítica da Razão Cínica. Relógio D’Água. Lisboa.
ZINSSER, W. (2021). Como Escrever Bem. O Clássico Manual Americano de Escrita Jornalística e De Não Ficção. Fósforo. Tradução Bernardo Ajzenberg. Ebook
Rapaz, que texto bom. E olha que de bunda na cadeira eu entendo. Nem sempre pela escrita, mas vc entendeu hehehehe Eu vou fixar esse texto pra voltar aqui de vez em quando.